
Nohara Paschoal – Advogada. Mestre em Direito Penal pela USP. Sócia da Paschoal Advogados. Professora do Curso de Segurança Pública da Faculdade VP.
A atuação do Ministro Luís Roberto Barroso nos seus últimos dias no Supremo Tribunal Federal (STF), antes de sua aposentadoria, foi marcada por um movimento polêmico para pautar o debate sobre o aborto, um tema de alta sensibilidade social e jurídica no Brasil.
O ponto central da sua ação foi em relação à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que busca a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
Luís Roberto Barroso solicitou ao presidente do STF, Ministro Edson Fachin, que pautasse o tema em sessão virtual extraordinária, alegando uma “excepcional urgência”, decorrente da aposentadoria.
Embora a urgência processual geralmente se relacione a riscos iminentes no mérito da causa, o Ministro Barroso usou sua saída iminente da Corte como um fator regimental para forçar o julgamento. Seu objetivo era garantir que seu voto fosse registrado e contasse no placar, impedindo que o seu sucessor votasse.
Em seu voto, o Ministro Barroso defendeu a descriminalização, argumentando que a interrupção da gestação deve ser tratada como questão de saúde pública e não de direito penal. O voto alinhou-se ao da ex-Ministra Rosa Weber.
Contudo, o julgamento da ADPF 442 foi suspenso por um pedido de destaque, e o mérito será retomado posteriormente no Plenário físico, mantendo-se, por enquanto, os votos de Weber e Barroso.
Paralelamente, o Ministro Barroso concedeu uma liminar (decisão provisória), em outras ações de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs 989 e 1207), para permitir que outros profissionais de saúde, como enfermeiros, pudessem atuar em procedimentos de aborto legal (casos já permitidos por lei: estupro, risco de vida da gestante e anencefalia).
O ministro alegou a necessidade de combater o “déficit assistencial” no país, visto que o Código Penal só menciona o “médico” e essa limitação dificulta o acesso ao direito, especialmente em regiões carentes. A liminar também suspendeu punições a esses profissionais.
No entanto, essa liminar foi derrubada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em referendo do Plenário. A maioria entendeu que não havia urgência suficiente para uma decisão individual e que a medida invadia a competência do Congresso Nacional (Legislativo) ao estender a permissão para atuar em aborto legal além do médico, conforme previsto no Código Penal.
Cabe destacar que o debate no Supremo Tribunal Federal ocorre em um cenário onde a maioria da população brasileira se posiciona contra a legalização do aborto, conforme recente pesquisa do Ipec, de julho de 2025. Com efeito, 75% dos entrevistados declaram-se contra a legalização do aborto, embora pesquisa anterior (Quaest, de dezembro de 2023) mostra que 84% das pessoas ouvidas não desejassem que as mulheres que abortam sejam presas (em vista da pena imposta que, inclusive, possibilita a suspensão condicional do processo, dificilmente uma mulher é presa pelo crime de aborto).
As ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal, embora tratem da descriminalização do aborto e não propriamente da legalização, extrapolam o aspecto penal. Isso porque, a descriminalização terá um forte impacto na política pública de saúde, forçando o SUS a estruturar e oferecer o serviço dentro do prazo legal, com a devida segurança e assistência.
De fato, ao aprovar a descriminalização do aborto até a 12ª semana, nos moldes do voto do Ministro Barroso, o procedimento não só deixaria de ser considerado um crime, mas passaria a ser um direito de saúde da mulher e, neste sentido, o Estado, por meio do SUS, passa a ser obrigado a oferecê-lo.
O tema da descriminalização do aborto é intrinsecamente marcado por uma complexidade que desqualifica a alegada “excepcional urgência”. O debate transcende a esfera jurídica, alcançando as políticas de saúde pública e valores profundamente enraizados na sociedade brasileira, como evidenciado pela forte rejeição da maioria (75%) à legalização irrestrita.
É necessário um tempo maior de maturação e reflexão no âmbito do STF. A tentativa de decidir monocraticamente ou mesmo por via judicial um tema de tamanha relevância, que inclusive implica a reorganização do Sistema Único de Saúde (SUS), não deixa de configurar uma interferência em matéria que deveria ser prioritariamente endereçada pelo Poder Legislativo.
A mudança no status legal deve se dar dentro de um processo de maior reflexão institucional e, fundamentalmente, de uma legitimidade democrática. A urgência processual de um ministro não pode suplantar a urgência da deliberação social.



