
Autor: Jorge Paschoal – Advogado e Mestre em Processo Penal pela USP; Coordenador e Professor do Curso de Tecnólogo em Segurança Pública da Faculdade VP
“Podem phrases theoreticas encobrir verdadeira feição da cousa, mas no fundo punir é sacrificar, sacrificar, em todo ou em parte, o individuo ao bem da communhão social, sacrifício mais ou menos cruel, conforme o grão de civilisação deste ou daquelle povo, nesta ou n’ aquella época dada, mas sacrifício necessário, que, se por um lado não se accomoda á rigorosa medida jurídica, por outro lado também não pode ser abolido por effeito de um sentimentalismo pretendido humanitário, que não raras vezes quer ver extinctas por amor da humanidade cousas, sem as quaes a humanidade não poderia talvez existir”
A institucionalização do conflito penal, por meio de um direito punitivo, mostrou-se uma conquista. Trata-se de premissa, sempre presente, em nossos escritos e em nosso trabalho acadêmico de Mestrado, sobre nulidades processuais penais. Embora sempre seja possível idealizar um sistema punitivo melhor, quer dizer, mais humano e justo, não é crível pensar na existência de uma alternativa ao direito penal (enfim, de algo melhor a ele), como querem as doutrinas abolicionistas.
Em uma explicação simples, o direito penal foi instituído diante da necessidade de conter o caos punitivo então reinante nas sociedades mais primitivas, já que – sem alguma formalização do direito, mediante a centralização de um poder punitivo -, a violência e a brutalidade imperavam em meio à desordem ínsita a um sistema orientado pela justiça privada.
Basileu Garcia demonstra os inconvenientes de um modelo de justiça assim, naturalmente violenta e acompanhada de todos os excessos, em que o ofendido agia contra o seu agressor de modo emocional e totalmente desproporcional: não raras vezes, o que era para ser um dissídio às partes acabava virando um conflito de todos contra todos, o que só gerava mais guerra, ódio e violência.
O sistema penal, portanto, foi criado e pensado para resguardar a segurança e a liberdade dos indivíduos envolvidos na controvérsia penal e, por via reflexa, de todos os membros da sociedade, já que, no velho sistema de vingança privada, também terceiros poderiam sofrer com a grande incerteza na aplicação dos castigos: não raro, estes se davam de modo coletivo. E sistemas assim não tinham como oferecer qualquer tipo de garantia, já que, na resolução do embate, prevalecia sempre a vontade do mais forte. Sendo assim, naqueles tempos mais primitivos, obviamente, não teria como existir qualquer noção de individualidade da culpa, de maneira que o ataque a um indivíduo representava uma ofensa a todo o agrupamento social (mexeu com um, mexeu com todos): o inimigo de um virava inimigo de todos. Punições coletivas, sangrentas e exemplares constituíam a regra absoluta.
Só com o passar do tempo que se atingiu um estágio de relativo progresso, procurando-se obter um estado de equilíbrio entre a ofensa praticada e a resposta conferida.
Chegou-se, assim, à pena de talião (olho por olho, dente por dente), a qual – embora hoje se mostre questionável do ponto de vista lógico – constituiu, à época, um importante passo rumo à racionalização do poder punitivo, por visar imprimir um pouco de racionalidade e proporcionalidade entre a ofensa praticada e a resposta conferida.
De todo modo, o direito, na Antiguidade, mantinha uma concepção essencialmente religiosa, punindo-se o agente por meio da vingança de sangue, pois, caso contrário, segundo se imaginava, “a sociedade jamais voltaria a gozar de tranquilidade”
Pouco a pouco, entretanto, percebeu-se o quão inseguro e temerário seria um sistema como esse, baseado ainda na ideia de punição privada, deixada exclusivamente ao arbítrio e nas mãos dos particulares, o que acarretava inúmeros problemas, pois, afinal, todos sabemos que “ninguém é bom juiz em causa própria (nemo judex in rem sua)”
Para proteção de todos, houve um lento e gradativo processo de centralização do poder, com uma crescente monopolização da resolução dos conflitos, nas mãos de um terceiro, desinteressado.
Deu-se, assim, paulatinamente, em épocas afastadas e distantes da história (que não seria possível precisar), o surgimento de um incipiente direito penal, isto é, propriamente formalizado, cujo objetivo foi conferir maior segurança e liberdade a todos.
Aos poucos, foi se delineando um sistema de resolução de conflitos cada vez mais centralizado e formalizado.
Ao direito penal foi conferida a função quase que exclusiva de repressão dos delitos. Ao reprimir o crime, por meio da punição, acaba tendo efeito dissuasório, prevenindo, em grande parte, a prática de novos crimes, garantindo a segurança e liberdade de todos, isto é, dos que delinquem e dos que não.
Não se desconsidera a controvérsia envolvendo a efetividade da função preventiva da punição, mormente no seu aspecto geral negativo, isto é, de que se conseguiria dissuadir, com a previsão da lei, a generalidade das pessoas de praticar atos delituosos.
De toda forma, não obstante a polêmica, Fernando Falcón y Tella e María José Falcón y Tella têm razão quando discorrem que “é difícil negar com bases sólidas a idéia de que as sanções penais podem intimidar, pelo menos a certos delinqüentes em potencial. Quando a polícia entra em greve ou quando está imobilizada por uma razão ou outra, a criminalidade aumenta de maneira significativa. Este é um dado em sentido comum. Quem pretenderia que os motoristas continuassem respeitando a regulamentação sobre o estacionamento se se cessasse a imposição de multas”. Entre nós, Miguel Reale Júnior também adverte que “não é possível fazer experiência sobre o efeito intimidativo da pena, porém, em recente greve de policiais militares, na Bahia, viu-se o aumento significativo dos saques e furtos”.
Em suma, o direito penal foi e (ainda) é imprescindível para a manutenção da vida social.
Não se pense, contudo, que o direito penal foi pensado para efetivar a proteção apenas de determinados indivíduos (como, por exemplo, tão-somente das vítimas). Aos infratores também interessa a formalização de um direito penal, por mais paradoxal que isso possa parecer, já que, sem um direito penal formalizado, a liberdade e a própria vida (do infrator) ficariam à mercê do senso de justiça do lesado/justiceiro.
O direito penal, portanto, não se justifica só para proteção do ofendido, mas também serve para a preservação da integridade física e da liberdade do indigitado infrator.
Portanto, um primeiro dado importante ao tratar do direito penal, ou melhor, dos fins do direito penal, o que tem especial ressonância no processo penal, é que ele se justifica na medida em que serve para minimizar todo e qualquer tipo de violência desnecessária: frise-se, não só a violência decorrente da prática dos delitos, mas, também – ou melhor, talvez principalmente – a proveniente dos castigos excessivos e/ou crueis, que, mais antigamente, no modelo de vingança privada, eram tendencialmente arbitrários, maximizados e desproporcionais, sendo o rol de reações e represálias bastante extenso (linchamento, escravidão, sevícias sexuais, mutilação, tortura, execução, etc).
A institucionalização do direito penal tem uma dupla finalidade preventiva: não só dos delitos, mas também das punições injustas, arbitrárias e desproporcionais, conforme ensina Luigi Ferrajoli:
“Quero dizer que a pena não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições”; “… o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como outra negativas, quais sejam a prevenção geral dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas”; “mais ainda: somente o segundo objetivo, ou seja, a tutela do inocente e a minimização da reação ao delito, é válido para distinguir o direito penal dos outros sistemas de controle social – de tipo policialesco ou disciplinar, ou talvez até terrorista – que, de forma mais ágil e provavelmente mais eficiente, teriam condições de satisfazer o objetivo da defesa social, em relação ao qual o direito penal mais do que um meio revela-se um custo, ou ainda, em se desejando, um luxo próprio das sociedades evoluídas”
Na verdade, para cumprir as muitas funções que se espera do direito penal, é somente com o processo, mediante a dissociação entre o juiz e parte lesada, que se dá um passo significativo para concretização e nascimento de um verdadeiro direito penal, em prol da contenção das violências.
Embora sempre seja tempo para repetir, a parte não pode ser juíza do seu caso. Um juiz ameaçado, um juiz ofendido, não pode, além de acusar, julgar o seu algoz, sob pena de deturpação de tudo que se entende por devido processo penal material. É lição básica. Imagine se a mesma prerrogativa, de analisar a controvérsia, com poder der julgamento, fosse conferida ao réu?
Evidentemente, essa evolução não se deu de uma hora para outra.
Inicialmente, nos primórdios, como bem apontam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, remetia-se a solução do caso para a análise de um sacerdote ou de um ancião, este por conhecer melhor os costumes do grupo e aquele por, supostamente, receber mensagens do Além ou mesmo orientações de Entidades. Depois, gradativamente, o poder de resolução do conflito foi passando a se centralizar na figura de alguém, de um líder (imperador, rei, príncipe) ou mesmo de um de seus representantes.
Assim, em um primeiro momento, os litigantes compareciam perante um representante estatal, o pretor, que concedia o encargo de decidir a causa a um árbitro. Este era livremente escolhido pelas próprias partes, mediante o compromisso denominado litiscontestatio; não por outra razão, por muito tempo foi forte a concepção de equiparar o processo a um contrato, ou quase-contrato. Mais tarde, até a escolha do árbitro coube ao pretor, passando o sistema a ser ainda mais concentrado.
Migrou-se de um modelo de arbitragem de cunho facultativo para um de resolução de conflitos de feição propriamente mais compulsória. Para um controle mais objetivo da aplicação do direito, houve a necessidade de serem estabelecidas regras. Surge, assim, a figura do legislador, ainda que tardiamente à do magistrado, como bem anota a doutrina.
A Lei das XII Tábuas (450 a.C.) foi um marco, nesse sentido, constituindo positiva limitação da violência e da vingança privada: previram-se, de forma específica, os crimes privados, tendo-se instituído a lei do talião e a mediação como um importante instrumento capaz de apaziguar os espíritos e, assim, evitar ou minimizar a vingança.
Finalmente, o Estado passa a decidir as causas diretamente, sem a necessidade de nomear um árbitro. Essa fase data do século III d. C., sendo conhecida como cognitio extra ordinem, constituindo o modelo de processo que – feitas algumas ressalvas, dado o seu viés inquisitorial – mais se aproxima do que se conhece hoje.
Conforme expõe Claus Roxin, “el Estado prohíbe, por principio, las venganzas privadas y los duelos (…) entonces nace para él, como reverso de una misma moneda, la obligación de velar por la protección de sus ciudadanos y de crear disposiciones que posibiliten una persecución y juzgamiento estatales del infractor y que la paz social sea renovada a través de la conclusión definitiva del procedimiento”.
Evidentemente, tal concentração de poder trouxe problemas (haja vista os abusos), o que demandou a necessidade de se instituírem maiores garantias; contudo, ainda assim, a formalização do Direito se mostrou algo muito melhor e preferível ao que havia antes (completa anarquia).
Do monopólio do poder de punir (formalismo penal) nasce para o Estado o dever de solucionar a controvérsia mediante um processo pautado em regras, que, aos poucos, dada a necessidade de maior proteção e segurança, foram se tornando mais claras, precisas e efetivas.
Nesse sentido, o formalismo processual se coloca como um segundo passo necessário e imprescindível ao próprio formalismo penal (material), de modo a propiciar a segurança e liberdade dos indivíduos, escopos presentes com a institucionalização do sistema penal.
Pode-se afirmar que, desde então, o direito penal, cada vez mais, passa a não ter “atuação nem realidade concreta fora do processo”.
A punição eventualmente aplicável não mais decorria da reação incerta e aleatória da vítima – ou mesmo de familiares e pessoas solidárias – mediante o “acerto de contas”, mas ficava a depender da apuração do fato em meio a um processo, cuja resolução era confiada a um representante estatal, um terceiro desinteressado.
Só com isso já se minimizaram muitas injustiças, pois a resolução do caso, se fosse deixada à sorte das próprias partes, levaria a diversas iniquidades, pois quem ditaria as regras do jogo sempre seria o mais forte; o que implicava, por um lado, impunidade (caso o mais forte fosse o agressor) e, por outro, em punição excessiva,
Sendo assim, como ensina Tobias Barreto, “o direito de punir é uma necessidade imposta ao organismo social, por força do seu próprio desenvolvimento”.
Na verdade, todos ganham com a institucionalização da controvérsia penal.
A vítima se sente mais protegida, pois, uma vez apurada a culpa do infrator, o Estado se encarrega da punição, dispondo de meios não só mais efetivos, mas também eficazes para concretizá-la. Também o acusado é tutelado, pois a sua conduta passa a ser apurada por um terceiro desinteressado, em meio a um procedimento (ainda que, inicialmente, de ordem rudimentar), o que, por si só, constituiu um avanço se comparado ao que vigorava antes. Ainda que o acusado seja culpado e venha a ser condenado, há de se convir que as consequências penais lhe são mais vantajosas e previsíveis, havendo limites ao poder de punir (legalidade das penas), o que, como regra, inexistia antes (reação incontrolável). Portanto, frise-se: mesmo em caso de punição, o sistema continua a ostentar um caráter garantista e protetivo em relação ao próprio apenado.
É equivocado pensar que o direito penal violaria a dignidade humana do agressor, por, supostamente, instrumentalizar a sua punição em prol de outrem (da vítima ou da sociedade), como, equivocadamente, aduz Miguel Reale Júnior, já que também o infrator (que é apenado) é sim tutelado pelo direito penal.
Do exposto, a institucionalização do direito penal não entra em conflito com o princípio kantiano de que ninguém pode ser instrumentalizado em favor de um fim.
Sob todos esses aspectos, a lei penal, como bem afirma a doutrina, se apresenta como a “lei do mais fraco” contra o mais forte: ela protege, em um primeiro momento, a vítima contra a violência do delito e, por outro lado, o próprio suposto agressor (contra a arbitrariedade da vingança do lesado), sendo a pena justificada como um mal menor se comparável aos males decorrentes da anarquia punitiva.
É importante ter em vista essas duas finalidades no processo. Nem a acusação nem a defesa são donas do processo.
O processo não visa proteger apenas o inocente, ao resguardar a sua liberdade, mas, igualmente, o infrator (isto é, o culpado), ao vedar penas excessivas e injustas, o que tem uma especial relevância a todos os institutos processuais.
Haja vista todos os avanços descritos, não é possível ou mesmo crível abdicar do direito penal (e, consequentemente, do processo criminal) institucionalizado, pois, sem ele(s), haveria retrocesso, quiçá rumo à barbárie ou, talvez, a um sistema pautado na vigilância total, instituindo-se um cenário que, ao contrário do que deseja grande parte das correntes abolicionistas, fatalmente descambaria para um Estado de feição totalitária.
A respeito do exposto, Luigi Ferrajoli bem afirma que “o abolicionismo penal – independentemente dos seus intentos liberatórios e humanitários – configura-se, portanto, como uma utopia regressiva que projeta, sobre pressupostos ilusórios de uma sociedade boa ou de um Estado bom, modelos concretamente desregulados ou auto-reguláveis de vigilância e/ou punição, em relação aos quais é exatamente o direito penal – com o seu complexo, difícil e precário sistema de garantias – que constitui, histórica e axiologicamente, uma alternativa progressista”.
Evidentemente, sabe-se que o sistema penal formalizado não é perfeito.
Aliás, na prática, nenhuma criação humana é isenta a críticas, o que não significa renunciar ao ideal de melhorar a realidade à volta.
De fato, no sistema penal formalizado, há a previsão de inúmeras hipóteses de fatos típicos que não deveriam ser considerados ilícitos.
E mesmo assim, ainda quando o direito é bem desenhado pelo legislador, há o risco de juízes, no afã de fazerem o papel de justiceiros, ou que de se acharem os paladinos da Justiça, da Moral (ou, por que não dizer, “guardiões do que se deva entender por democracia”, ainda que esta seja bem relativa) o deturparem, aplicando o direito conforme conveniências políticas/ideológicas, aplicando penas pesadas para alguns, mas suavizando a lei para outros, conforme a lógica do “um peso, duas medidas”, havendo o risco de o arbítrio se originar do Judiciário, caso não haja uma autocontenção de poderes, ou mesmo, em Estados pouco acostumados ao respeito às liberdades em geral, haja um sistema capenga de separação de poderes.
De toda forma, ainda assim, é melhor existir algum tipo de previsão legal, formalização do direito, isto é, que discrimine (ainda que, às vezes, debilmente) qual conduta é proibida e qual o limite de pena cominada, a, simplesmente, inexistir qualquer especificação nesse sentido.
O que não se pode é, devido às inconsistências e aos problemas do direito penal, pretender abdicar do sistema formalizado, deixando a resolução do caso nas mãos dos envolvidos, sob a utopia abolicionista de que, entre os particulares, a controvérsia seria resolvida de uma forma melhor e mais efetiva.
A esse respeito, lembra-se que a história demonstra justamente o contrário.
Todas as vezes que se pretendeu implementar uma desformalização do direito e do processo penal houve retrocesso.
Na prática (basta passar os olhos pela história), sempre que se tentou instituir algo melhor ou diferente do direito penal formalizado, o que se viu foi justamente o contrário do que, originariamente, se alardeava. Não raras vezes, houve um revigoramento de um super Estado (totalitário), pautado em um direito penal máximo (ainda que não formalizado, mas ainda assim punitivo), extremamente severo, opressor e estigmatizante, onde sequer havia um modelo mínimo de legalidade dos delitos e penas.
Um sistema formalizado, por mais que seja (e, certamente, deva ser) sujeito a críticas, é (ainda) a melhor opção, por meio de um direito legítimo e de uma estruturação de segurança pública adequada, que garanta o direito de todos, sendo, ainda hoje, a melhor forma de proteger a todos os indivíduos.