O Policiamento nas Sociedades Antigas: Contribuições Históricas para a Formação do Tecnólogo em Segurança Pública

André Luís LuengoDoutor em Direito Constitucional e Delegado de Polícia

Resumo

Este artigo busca compreender o policiamento nas sociedades antigas, analisando suas origens, funções e métodos de controle social. Por meio de abordagem histórica e interdisciplinar, discute-se a evolução das práticas de vigilância e repressão em civilizações como Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma, estabelecendo conexões com a formação contemporânea do Tecnólogo em Segurança Pública. O estudo aponta que, embora os modelos de policiamento antigo estivessem vinculados à manutenção do poder político e à ordem religiosa, eles forneceram as bases para a institucionalização da segurança pública moderna.

Palavras-chave: Policiamento; Sociedades Antigas; Segurança Pública; História; Tecnólogo.

Introdução

O policiamento é um fenômeno social que acompanha a humanidade desde a constituição das primeiras cidades.

Antes mesmo da formação de instituições estatais modernas, sociedades antigas desenvolveram sistemas de vigilância e repressão destinados à manutenção da ordem.

Compreender esses modelos históricos é fundamental para a formação crítica do Tecnólogo em Segurança Pública, pois revela a origem do controle social e seus reflexos nos modelos contemporâneos.

O policiamento na Mesopotâmia e no Egito

Quando o assunto é no campo das Ciências Policiais e da Segurança Pública, sobretudo quando se pretende compreender as origens históricas e filosóficas do policiamento, a escolha da Mesopotâmia e do Egito Antigo como objetos de análise não é aleatória.

Ambos representam os primeiros modelos organizados de Estado, Direito e Administração Pública — pilares sem os quais não há possibilidade de existência de polícia.

Na Mesopotâmia, registros do Código de Hamurábi (c. 1750 a.C.) revelam preocupação com a vigilância e punição, vinculando crime a castigos exemplares.

A Mesopotâmia, considerada o berço das primeiras civilizações organizadas (sumérios, babilônios e assírios), desenvolveu, ainda no terceiro milênio antes de Cristo, as bases do que hoje se entende como sistema de segurança pública. A noção de ordem e justiça estava intrinsecamente ligada ao poder político e religioso do rei, que concentrava as funções de soberano, juiz e comandante militar.

O Código de Hamurabi era a principal fonte sobre a aplicação da lei e a manutenção da ordem. Embora não existisse uma polícia no sentido moderno, havia agentes estatais responsáveis por: investigar crimes e capturar infratores; executar sentenças e punições; garantir a segurança dos mercados e rotas comerciais; e controlar tumultos e assegurar o cumprimento das ordens reais.

Esses agentes eram subordinados diretamente ao governador da cidade (ensi) ou ao representante do rei (lugal), que agiam como verdadeiros “delegados” do poder central. A atuação policial se confundia com a função judicial, refletindo a inexistência de separação entre os poderes.

No Egito Antigo, havia uma estrutura de guardas responsáveis pela proteção de templos e palácios, vinculando policiamento à preservação do poder religioso e político.

Esse policiamento estava intimamente associado à figura do faraó, considerado um deus vivo e detentor do maat (ordem e justiça).

A manutenção da ordem pública era vista como uma expressão da harmonia cósmica e social.

Os egípcios desenvolveram um aparelho de segurança institucionalizado mais elaborado que o mesopotâmico. Existiam guardas do palácio e das tumbas, formados por militares.

Eles também criaram uma unidade especializada, a Medjai (ou Medjay): originalmente tribos núbias que se tornaram uma força policial permanente, atuando no patrulhamento de fronteiras, desertos e cidades.

Os Medjai podem ser considerados os precursores das polícias modernas, pois exerciam funções que incluíam: prevenção de furtos em templos e mercados; controle de distúrbios e manutenção da paz pública; execução de mandados e captura de criminosos; escolta de autoridades e proteção de caravanas.

Os registros arqueológicos (papiros de Deir el-Medina e inscrições em tumbas) indicam que o policiamento egípcio atuava também como força de investigação. Havia interrogatórios formais, coleta de depoimentos e registros escritos — um embrião dos atuais procedimentos de polícia judiciária.

O policiamento na Grécia Antiga

A escolha da Grécia Antiga como objeto de estudo, ao lado de civilizações como Mesopotâmia e Egito, é justificada por razões históricas, filosóficas e institucionais que marcam o início da concepção política e cívica do policiamento — distinta da simples repressão ou defesa militar.

A Grécia Antiga (aprox. 1200 a.C. – 146 a.C.) representa o marco da transição do poder teocrático para o poder político racional, e isso tem implicações diretas para o estudo do policiamento.

Enquanto na Mesopotâmia e no Egito a autoridade derivava da divindade, na Grécia ela passou a se fundamentar na organização da pólis (cidade-Estado) — o espaço onde nasceram os conceitos de cidadania, lei e ordem pública.

Essa mudança filosófica e institucional faz da Grécia o primeiro modelo histórico de segurança baseada na razão e no direito civil, não apenas na autoridade divina.

Em Atenas, os arcontes e, posteriormente, os escravos públicos (scythianos) atuavam como mantenedores da ordem.

O policiamento grego tinha caráter comunitário, mas subordinado ao poder político.

A politeía — termo que origina “polícia” — referia-se à organização e administração da cidade, ou seja, ao conjunto de regras e práticas destinadas ao bem comum (koinon agathon).

Assim, o policiamento nasce como expressão da vida civil organizada, cujo objetivo era: garantir a convivência pacífica entre os cidadãos (polités); fazer cumprir as leis elaboradas pelas assembleias; e assegurar o funcionamento das instituições da pólis.

O policiamento em Roma

Para a compreensão da evolução histórica do policiamento e do poder de polícia no Ocidente, se faz necessário analisar, ainda que superficialmente o policiamento em Roma.

A Roma Antiga representa um marco singular porque nela ocorre a transformação da segurança pública em função administrativa de Estado, com estruturas hierarquizadas, especialização funcional e princípios jurídicos que inspiram até hoje o Direito Administrativo e Policial contemporâneo.

Roma criou uma das estruturas mais avançadas: os vigiles, responsáveis por vigiar ruas, combater incêndios e controlar tumultos.

A cohors urbana e a guarda pretoriana tinham funções de policiamento urbano e proteção do imperador. Roma consolidou a ideia de que o policiamento era um serviço público, ainda que altamente militarizado.

Conforme analisa Suano (1999), o pensamento militar brasileiro histórico revela a busca pela integração entre Estado, poder político e força armada como garantia de estabilidade.

Essa visão, reminiscente dos modelos romanos de policiamento, demonstra como a militarização da segurança pública foi concebida como instrumento de coesão nacional, mas também impõe reflexões éticas sobre o equilíbrio entre autoridade e cidadania.

Roma representa o amadurecimento da ideia de Estado e do poder de polícia, com: separação entre funções civis e militares; estrutura hierárquica de comando; normatização do uso da força e da administração da justiça; e o reconhecimento do dever estatal de garantir a ordem e a segurança coletiva (pax romana).

Relevância histórica para o Tecnólogo em Segurança Pública

O estudo do policiamento antigo permite compreender o vínculo entre poder político e controle social, a transição do policiamento comunitário para o institucionalizado e a influência de modelos militares na segurança pública.

Para o Tecnólogo, essa análise reforça a necessidade de compreender a segurança pública como processo histórico e social, evitando anacronismos e fortalecendo a base científica da atuação.

Conclusão

O policiamento nas sociedades antigas demonstra que a manutenção da ordem sempre foi um desafio humano.

Da Mesopotâmia à Roma, observa-se que a vigilância, o controle e a repressão estiveram associados ao poder político e à preservação da coesão social.

Para o Tecnólogo em Segurança Pública, esse estudo fornece elementos para compreender que a segurança não é apenas uma função técnica, mas também histórica, política e cultural.

Reconhecer essa herança histórica é fundamental para desenvolver políticas de segurança pública que combinem eficiência, legitimidade e respeito aos direitos fundamentais.

Bibliografia

BATITUCCI, Eduardo Cerqueira; MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Segurança pública: dilemas entre o público e o privado. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

BEATO, Cláudio C. Criminologia e segurança pública. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

CANO, Ignacio; BORGES, Doriam. “De homicídios”. Cap. no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

GARRAFFONI, Renata Senna. Polícia e policiamento no mundo romano. São Paulo: Annablume, 2005.

HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

IPEA; FBSP. Atlas da Violência 2025. Brasília: IPEA; São Paulo: FBSP, 2025.

KAHN, Túlio. Criminalidade e estatísticas: uma análise crítica da produção de dados sobre segurança pública no Brasil. São Paulo: NEV/USP, 2002.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

LIMA, Renato Sérgio de. Produção da opacidade: estatísticas criminais e segurança pública no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça, 2001. (Série Justiça e Cidadania, v. 2).

MINGARDI, Guaracy (org.). Política de segurança: os desafios de uma reforma. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013.

MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; CARUSO, Haydée. Polícia, sociedade e Estado: dilemas e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2010.

QUETELET, Adolphe. Sur l’homme et le développement de ses facultés, ou Essai de physique sociale. Paris: Bachelier, 1835.

REINER, Robert. A política da polícia. São Paulo: Editora da USP, 2004.

ROLIM, Marcos. A síndrome da rainha vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Porto Alegre: Zouk, 2006.

SAPORI, Luís Flávio. Segurança pública no Brasil: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 24. ed. São Paulo: Cortez, 2016.

SILVA, João Apolinário da. Análise criminal: teoria e prática. Brasília: IBSP, 2015.

SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SUANO, Marcelo José Ferraz. Para inserir o Brasil no reino da história: o pensamento político e militar do General Góes Monteiro. Manaus: EDUA, 1999. 315 p. ISBN 8574010383

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *