Legítima defesa e legítima defesa especial.

Jorge Coutinho Paschoal – Advogado e Mestre em Processo Penal pela USP; Coordenador e Professor do Curso de Tecnólogo em Segurança Pública da Faculdade VP.

Para que haja legítima defesa (ou para que alguém aja acobertado por ela), segundo o artigo 26, do Código Penal[1], deve haver uma agressão anterior, injusta, decorrente, necessariamente, de uma ação humana.

A agressão deve ser atual ou iminente, injusta, lesando ou colocando em risco direito próprio ou alheio (um bem jurídico).

Não há que se confundir agressão com provocação. Quem reage a uma provocação, age criminosamente.

A reação (legítima) deve empregar os meios necessários, entre eles os menos lesivos que estiverem à disposição da pessoa em perigo (dentre eles, os mais eficazes) para repelir a injusta agressão.

O contexto terá que ser analisado no caso concreto: quando um sujeito de grande porte vai para cima de uma pessoa vulnerável, ou idosa, ou para cima de uma mulher, não se pode considerar, a priori, desnecessário o uso de uma arma, nesta situação, ainda que a outra pessoa, o agressor, esteja desarmada.

Deve haver moderação, pelo menos em tese; reação moderada é aquela exercida até (ou para fazer) cessar a agressão sofrida.

Evidentemente, para quem está fora da situação concreta, no calor do momento, é muito cômodo ou fácil fazer este juízo de valor, isto é, se a ação do outro atendeu, ou não, a (todos) estes requisitos, pois a pessoa que vai avaliar o contexto não está na situação de perigo real, isto é, no fogo cruzado.

Muitas vezes, quem julga ou aponta o dedo contra quem se defendeu, não raro o faz no conforto de sua sala de estudos, ou no aconchego do seu gabinete ou escritório, não levando em consideração a situação concreta.

Por isso, deve-se levar em conta o calor do momento, a situação de conflituosidade inerente à realidade posta; ademais, não se pode desconsiderar o nervosismo, bem como o pouco tempo de ação de que dispõe a vítima para afastar a ameaça (sobretudo no caso de agentes de segurança, quando em risco a vida de terceiros inocentes, pois frações de segundo fazem a diferença entre salvar a vida, ou não, de alguém), para não se cometerem injustiças.

Evidentemente, não se pode e não se deve tolerar qualquer tipo de abuso, ou a prática de crimes, como execuções sumárias travestidas de atos de legítima defesa, sendo que o policial que executa alguém, sem qualquer necessidade, também não deixa de ser um criminoso, devendo, por consequência, ter a devida e pronta resposta penal.

Contudo, naqueles casos (que são a esmagadora maioria), em que o policial age no estrito cumprimento do dever legal, considerando a atividade de risco, não se pode exigir do agente – no enfrentamento, sobretudo, da criminalidade organizada e/ou violenta –, uma ponderação milimétrica dos requisitos da lei, sem que se leve em conta todo este contexto, pois, por exemplo, diante de um indivíduo, que ostenta um fuzil em sua mão, o policial encontra-se em uma situação delicada, de risco da própria vida. 

O policial, para tanto, deve ser bem treinado, mas seria até cínico, da parte do estudioso, não levar em consideração que, em algumas situações, há um contexto de violência exacerbado, observando-se que muitos policiais são mortos, inclusive, fora de serviço, seja porque já estão marcados para morrer, seja porque o criminoso, ao empreender um delito contra ele, no curso da abordagem, descobriu sua identidade/função, executando-o, de imediato.

A legítima defesa especial, que foi prevista com a reforma empreendida pela assim chamada lei anticrime (Lei 13.964/2019), no caso dos agentes de segurança, é assim designada porque tem, em si, elementos adicionais, complementares à legítima defesa comum, considerando-se a situação de peculiar tensão da atividade dos agentes de segurança, sobretudo em casos envolvendo terceiros, com reféns, pessoas ameaçadas com arma de fogo ou outro tipo de arma (faca no pescoço).

Não se trata, como equivocadamente alguns interpretam, de uma licença para matar.

O primeiro ponto é que se aplica apenas a agentes de segurança pública.

O segundo é que o agente age para repelir agressão ou risco (perigo) de agressão à vítima, que é mantida em uma situação de refém.

Com a legítima defesa mencionada, o agente poderia, em tese, agir de pronto, para repelir a ameaça presente, não precisando esperar até o último ou derradeiro momento antes de o agressor partir, efetivamente, para atacar ou ferir a vítima, até porque nunca se saberia quando isso ocorreria.

Esta é a peculiaridade desta modalidade de legítima defesa especial, sendo cabível quando há risco de agressão grave a terceiro, na situação especial mencionada.

A rigor, a reforma implementada em 2019, entrando em vigor em 2020, com a previsão desta hipótese de legítima defesa de terceiro, apenas explicitou o que, de certa maneira, já constava da lei (afinal, a legítima defesa de terceiro sempre foi uma hipótese de excludente de ilicitude), pois a vítima, que tem contra si uma arma apontada (ou uma faca sob o pescoço), já se encontra em situação de iminente risco.

Só mesmo muito cinismo para não vislumbrar uma situação limite, neste caso.

A alteração legislativa conferiu uma maior segurança jurídica ao agente de segurança pública, que, ao agir no mais estrito cumprimento do dever legal, para salvar a vida de um terceiro inocente, ao conseguir evitar a morte do refém, sem contudo evitar danos ao agressor, não raro era submetido a procedimentos investigatórios para apurar a sua conduta, em tudo legítima e que nada tinha de criminosa, quando não já sendo punido antecipadamente, com afastamento da função, ainda que tivesse atuado de forma transparente e conforme a lei.

Evidentemente, o melhor dos cenários, nas situações ventiladas, é que ninguém saia ferido, preservando-se a vida do refém e, obviamente, também do criminoso. “Bandido bom” não é bandido morto, mas sim punido conforme os termos da lei; contudo, no mundo das pessoas de carne e osso (o Brasil é um país violento e algumas regiões vivem uma realidade de guerra), em situações limite, isso nem sempre será possível, sendo que, ao intervir para salvar a vida de alguém submetido à situação tão delicada, de risco iminente, terá o agente que acarretar danos ou, ao agir em legítima defesa, causar a morte do ofensor, não podendo o agente ser punido, pois, é claro, agiu no mais estrito cumprimento do dever legal, salvando vidas de pessoas inocentes, as quais não criaram aquela situação, não ameaçaram ninguém ou colocaram em risco outras vidas. Não atuou o agente para matar; agiu para salvar vidas. E salvou. Por isso deve ser premiado, jamais punido. Neste sentido, foi bem-vinda a reforma legislativa.


[1] Legítima defesa – Art. 25, do Código Penal – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.  Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. 

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *