
Jorge Coutinho Paschoal – Advogado e Mestre em Processo Penal pela USP; Coordenador e Professor do Curso de Tecnólogo em Segurança Pública da Faculdade VP.
Na Idade Média, dado o grande número de normas punitivas, ninguém sabia ao certo o que era proibido/permitido. As incertezas ficavam ainda maiores se se considerar também que, em muitos casos, o juiz poderia escolher qual seria a reprimenda aplicável.
Para se ter uma pequena noção do exposto, a Professora Mariângela Gama de Magalhães Gomes explica que, na Idade Média, no que tange ao direito germânico franco-alemão, chegava-se ao extremo da insegurança, pois: “a Constitutio Criminalis Carolina do imperador Carlos V, de 1532, que dispunha acerca do direito penal comum alemão e, apesar de remeter em seus arts. 104 e 105 ao direito positivo, deixava a escolha do tipo e da medida da pena aos bons costumes e ao juiz, assim como permitia a aplicação analógica do direito positivo aos ‘casos penalmente inonimados’. Reconhecia também inúmeras outras fontes de direito, de maneira que não oferecia nenhuma garantia frente aos castigos extralegais”[1].
Igualmente havia conflito entre competências para julgar determinado fato, já que muitas eram as hipóteses similares de atribuições previstas para as justiças locais e, por exemplo, para a competência dos tribunais eclesiásticos, o que tinha efeitos práticos importantíssimos, levando ao bis in idem. A necessidade por um direito mais certo e unificado se fazia urgente. Outrossim, muitos eram os abusos cometidos em detrimento dos indivíduos, dos homens comuns.
O fortalecimento dos Estados nacionais, apesar de implicar, em um primeiro momento, grande concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, paralelamente contribuiu para conferir maior segurança física e jurídica às pessoas[2].
Com efeito, com exceção da nobreza e dos integrantes da Igreja Católica, a esmagadora maioria dos indivíduos, na época, encontrava-se sujeita aos caprichos e desmandos do senhor da terra (lei de cada feudo).
Nesse sentido, a unificação do direito, por meio de um poder central, propiciou maior estabilidade às relações individuais e sociais, embora, inicialmente, as previsões normativas eram demasiado cruéis e desproporcionais ao olhos de hoje.
Na Península Ibérica, embora a monarquia portuguesa já estivesse fortalecida com D. Afonso II, que instituíra as primeiras leis gerais, a concentração de poder real se dá, mais nitidamente, com D. Afonso III, em 1248, quando a lei passou, de fato, a “ser expressão exclusiva da vontade régia”[3], o que também seria implementado por outros monarcas, notabilizando-se, nesse sentido, o Reinado de D. Diniz[4].
No que concerne às penas, “D. Dinis determinou que descrer de Deus e de Sua Mãe, Santa Maria, ou admoestá-los, por quem quer que fosse, constituía crime, sendo o criminoso queimado depois de se lhe extrair a língua pelo pescoço. Também mandou punir com a morte o crime que, pelos forais, era chamado de merda na boca, injúria gravíssima que consistia em o ofensor colocar ou mandar colocar excrementos na boca do ofendido, e, em 1311, mandou punir o encobrimento de malfeitores com pena equivalente para o autor do delito e para o encobridor. Ainda com esse rei apareceu o delito de burla, que se caracterizava em o condenado em juízo esconder ou alienar seus bens para evitar a execução da condenação. Seu antecessor, D. Afonso III, determinara a punição das assuadas, ou seja, os bandos que os fidalgos convocavam para tomar desforço de ofensas recebidas, em que se reuniam parentes, amigos, vassalos, que se tornavam, às vezes, verdadeiras guerras privadas”[5].
D. Afonso IV, que sucedeu o reinado de D. Diniz em 1325, começou a mandar juízes de fora para residirem no lugar por certo tempo[6], “por presumir o direito que, sendo estranhos, sem na terra terem parentes nem amigos, compadres ou companheiros, ou bem malquerenças e ódio, com outros, podiam resistir às prepotências dos poderosos, castigar os seus excessos, sem ficarem expostos à vingança dos mesmos poderosos, e assim faziam melhor justiça do que os naturais da terra”[7]. Inicialmente, havia o intento de haver um único juiz de fora para substituir os juízes da terra; contudo, por conta da epidemia da peste negra, o número de juízes teve que ser aumentado[8].
“D. Afonso IV legislou para coibir os crimes sexuais, entre os quais alinhou o adultério, que assim era considerado na época; para coibir os jogos de azar, prescreveu a pena de morte para aquele que empregasse dados falsos ou chumbados. Na Carta de Santarém (1331), cuidou dos crimes contra a propriedade, que, pelo direito foraleiro, implicava no pagamento pelo criminoso à vítima de nove vezes o valor dos bens subtraídos (‘furto anoveado’), mas que, na reincidência, passou a ser punido com a pena de morte. Muitas dessas leis, encontráveis no Livro de Leis e Posturas, ingressaram nas Ordenações Afonsinas”[9].
No reinado de D. Afonso foi promulgada a Lei sobre as inquirições devassas, afirmando João Mendes de Almeida Júnior que D. Afonso IV, “foi o rei que deu as primeiras leis gerais para o processo criminal”[10].
“Havia o inquérito propriamente dito e a devassa: o inquérito era uma inquirição que exigia a presença do acusado; a devassa era a inquirição feita ex-officio e sem o concurso do acusado. Foi a inquirição devassa que, favorecendo os progressos do processo secreto e o procedimento das justiças, dispensando o concurso das partes, tornou-se depois o instrumento de todo o processo criminal ex-officio. A denúncia, que também se foi introduzindo já desde a jurisprudência dos forais, teve como conseqüência cessarem as partes de intervir no processo da instrução, que assim se achou inteiramente concentrada nas mãos do juiz”[11].
Sucedendo a D. Afonso VI veio o reinado de D. Pedro I, que restringiu um pouco a incidência dos tormentos, isentando deles os fidalgos, bem como instituiu as Cartas de segurança para que os réus se livrassem soltos da acusação[12].
“D. Pedro I foi o sucessor de D. Afonso IV. Aquele poderia ter ingressado mais profundamente na História de Portugal apenas pelo seu romance com Inês de Castro, que CAMÕES imortalizou. Contudo, a sua passagem pelo trono português está retratada também pelo seu acalentado ideal de justiça, donde o cognome de o Justiceiro. Sua justiça, porém, era implacável. PEDRO CALMON, sobre D. Pedro I, escreveu: ‘Verdade, D. Pedro o cru não provou as consolações da misericórdia, no perdão, que anistiasse os matadores de Inês de Castro. Vingou-a, e ao amor contrário à ‘razão de Estado’, com brutalidade memorável. Mas, insensível à piedade, no coração, que o ódio enregelou, teve menos a mística – ou a mania (pobre desvario de rei passional!) da justiça a todo transe’. Mas, não só esse ângulo deve ser visto D. Pedro, o Justiceiro. Afirma-se que este homem corria todo o território, disposto a ouvir os reclamos do povo, queixas essas que eram efetivamente apuradas. Se verdadeiras, os castigos eram pronta e seguramente aplicados, tanto para o fidalgo quanto para o peão, na mesma proporção. Daí o amor que lhe era devoado pelo povo, pois, com a sua forma de justiça, ditada mais pelo sentimento pessoal, impedia que as classes privilegiadas tripudiassem sobre os mais pobres e fracos. Mas, talvez em razão das moléstias que o assoberbavam, exagerou na condução dos tormentos, para a obtenção de confissões e na aplicação de sanções crudelíssimas, quando o delito mais lhe despertava a ira”[13] .
Também consta que D. Pedro I, atendendo aos reclamos populares dos abusos das inquirições sem a presença das partes, determinou que estas tivessem participação, a não ser que se tratasse de feitos de morte e de casos graves, estatuindo que – quem desse querela – devia juramentá-la, nomeando as testemunhas[14].
Pondo cerco às jurisdições locais, exercidas pelos senhores de terra, de modo a lhes coibir todo tipo de excessos, veio o reinado de D. Fernando I, o qual criou os quadrilheiros para as prisões em flagrante delito e ordenou a perseguição de meliantes, vagabundos e ladrões de estradas; mesmo que os senhores locais pudessem conhecer de alguma causa criminal, ainda assim, em prol de um maior controle real, e segurança, devia haver apelação de ofício ao rei[15].
Por uma Lei (de 13 de setembro) de 1413, passavam os corregedores, pelos menos duas vezes ao ano, a ter que inspecionar as vilas, fazendo a eleição de juízes ordinários, vereadores e mais funcionários[16]. Politicamente, contudo, no reinado de D. Fernando, houve a oportunidade para que a nobreza recuperasse os privilégios perdidos[17].
“Antes de morrer, D. Fernando I, moribundo, instado por Leonor Teles, assinou um contrato de casamento de sua única filha, herdeira do trono, com o Rei de Castela, e ‘lançou-se na aventura de entregar a pátria ao jugo estrangeiro, preço por que esperava garantir-se pessoalmente. Recebeu, para tanto, o apoio de muitos nobres, talvez a maioria, que não se importavam de ver Portugal desaparecer como nação, absorvido no reino vizinho, desde que, por tal via, lograssem resguardar privilégios há tanto tempo periclitantes. A manobra repugnou a consciência de nacionalidade já existente. Surgiu, então, em meio a um pugilo de heróis, a figura de Nun’Álvares Pereira, o Condestável, quando, então, rompeu-se o equilíbrio existente na luta de classes, operando-se a união da nobreza nacionalista com a burguesia, agora em torno do Mestre de Avis, aspirante ao trono lusitano. Vencida a luta, foi o Mestre de Avis sagrado rei, com o título de D. João I, iniciando-se, com ele, a dinastia”[18].
“A eclosão de um sentimento nacionalista e de independência, passou a reclamar a elaboração de uma legislação genuinamente portuguesa, que viesse a substituir, de vez, a Lei das Sete Partidas. Afirma-se ter João das Regras publicado uma tradução, em língua vulgar, do Corpus Juris, onde se apresentavam glosas de Acúrsio e de Bártolo. A este trabalho teria se seguido uma coletânea de leis, de caráter privado, denominada de Ordenações de D. Duarte, cujo nome, parece, teria surgido em razão de ter diso a coletânea encontrada na Biblioteca de D. Duarte I, ‘o qual lhe acrescentou por seu próprio punho uma Tábua ou Índice e um discurso sobre as virtudes do bom julgador”[19].
Dado esse processo de centralização do poder, paralelamente colocou-se a necessidade de uma maior unificação do direito vigente, já que, durante séculos, se avolumavam leis totalmente díspares, confusas e contraditórias, como as leis dos forais, do direito romano e do próprio direito canônico[20].
Abriu-se caminho para o surgimento das Ordenações do Reino de Portugal, entre as quais, as Afonsinas, as Manuelinas e, posteriormente, as Filipinas, que serão objeto de outro texto mais específico, observando-se que a última, teoricamente, vigorou, por muito tempo, entre nós, no período do Brasil Colônia.
[1] GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 06, nota de rodapé n. 02.
[2] DIMOULIS, Dimitri & MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo, RT, 2009, p. 30.
[3] PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, evolução histórica e fontes legislativas. Bauru: Jalovi, 1983, p. 45-46.
[4] “Em 1279, subiu ao trono . Diniz. Este rei, em 1290, instituiu o Estudo Geral de Lisboa, núcleo das universidades lusitanas. Até então, o ensino que era ministrado nas catedrais e nos mosteiros, não passava do trivium e quatrivium, com rudimentos de Gramática, Retórica, Dialética, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. O Direito era ensinado sobretudo em Bolonha e Salamanca, para onde acorriam alunos dos vários países, enquanto a Teologia era ministrada em Paris. Instalado inicialmente em Lisboa, o Estudo Geral foi, em 1308, transferido por D. Diniz para Coimbra, onde, após mudanças alternadas entre as duas cidades, fixou-se em definitivo em 1537, agora já estabelecido como Universidade, pois que o Papa Nicolau IV, pela bula statu regni portugallie, datada de 9 de agosto de 1290, assim a reconhecerá” (PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 46).
[5] PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 50.
[6] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I. 4.ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1959,, p. 98.
[7] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 98.
[8] PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 51.
[9] PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 50.
[10] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 100. Destaca José Henrique Pierangeli que “outras modificações, porém, no campo do Direito, foram operadas no reinado de D. Afonso IV. É que, até então, resquícios de vingança privada ainda eram constatados na península, inclusive em Portugal, conquanto não fossem, de regra, tolerados pelo Código Visigótico. Tal ocorria, por exemplo, no homicídio e nas ofensas graves, cujo direito de vingança, a exemplo da investidura militar, era transmitido aos herdeiros. Como informa SILVA FERRÃO, ‘é bem conhecida a lei da revindicta, que prescrevia os termos, a forma, em que cada um podia exercer esse direito, contanto que fosse fidalgo e homem bom. O costume, porém, do reino, ia mais longe, permitindo a todos vingar a desonra dos seus parentes, ou escoimar; o costume que D. Afonso IV, em 1363 e 1385, tratou de abolir em grande parte, e que D. Afonso V suprimiu completamente. A revindicta importava entre nos, mais alguma cousa, que a vingança das ofensas recebidas, pois, como a mesma palavra o diz, era vingança da vingança tomada. O herdeiro, que tinha recebido o triste legado dela, era obrigado pela força da opinião a retribuir com maior soma de mal ao ofensor, do que aquele que este tinha causado’. A compositio, contudo, era francamente admitida” (PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 47).
[11] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 102.
[12] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 101.
[13] PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 47-48.
[14] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 102-103.
[15] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 103.
[16] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 103.
[17] PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 48.
[18] PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 48-49.
[19] PIERANGELI, José Henrique. Processo penal, p. 49.
[20] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 109.



