
André Luís Luengo – Doutor em Direito Constitucional e Delegado de Polícia
Resumo
Este artigo analisa a problemática da interpretação e manejo de dados e registros oficiais na segurança pública, destacando a importância de metodologias científicas e da correta utilização das estatísticas criminais para a formulação de políticas públicas eficazes. Apesar dos avanços na produção de dados no Brasil, especialmente por instituições como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), persistem desafios relacionados à padronização, confiabilidade e uso político dessas informações. A análise evidencia que a carreira de Tecnólogo em Segurança Pública exige competência metodológica para interpretar registros oficiais, transformar estatísticas em diagnósticos e elaborar estratégias de prevenção baseadas em evidências.
Palavras-chave: Segurança Pública; Estatísticas Criminais; Interpretação de Dados; Tecnólogo em Segurança Pública.
Introdução
A segurança pública constitui um dos maiores desafios contemporâneos do Estado brasileiro.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reconhece-a como dever do Estado e direito de todos.
Na era da informação, os dados criminais, estatísticos e administrativos tornaram-se elementos centrais para o planejamento e a avaliação das políticas de segurança pública.
O tecnólogo em Segurança Pública, formado para atuar na gestão, análise e interpretação desses dados, enfrenta o desafio de lidar com bases oficiais fragmentadas, inconsistentes e, muitas vezes, subutilizadas.
Para sua efetividade, contudo, é imprescindível o uso racional de dados e registros oficiais, oriundos de boletins de ocorrência, inquéritos policiais, autos judiciais e estatísticas consolidadas.
Conforme aponta Lima (2001), a produção estatística criminal no Brasil é marcada por opacidades, lacunas e fragilidades metodológicas que afetam tanto a confiabilidade das informações quanto sua utilização na formulação de políticas públicas.
O problema de interpretação e manejo de dados e registros oficiais não se resume a uma questão técnica, mas reflete limitações estruturais, metodológicas e institucionais que comprometem a qualidade da informação e, por consequência, a eficácia das decisões estratégicas em segurança pública.
Nohara Paschoal (2023), adverte que a gestão pública contemporânea exige que o tratamento das informações oficiais obedeça aos princípios da transparência, publicidade e accountability, de modo a assegurar o controle social e a efetividade das políticas públicas.
A autora enfatiza que o dever de boa governança da informação constitui elemento essencial da função administrativa moderna, sobretudo nas áreas sensíveis de segurança e direitos fundamentais.
Nesse contexto, o profissional tecnólogo em segurança pública deve ser preparado para lidar com esses obstáculos, empregando critérios científicos.
1. A produção de dados em segurança pública
A segurança pública, tradicionalmente orientada por práticas empíricas e reativas, passa a depender cada vez mais da produção sistemática e qualificada de dados.
Produzir dados em segurança pública significa registrar, organizar e interpretar informações sobre ocorrências criminais, operações, recursos humanos e materiais, e resultados institucionais, de modo a subsidiar políticas, decisões e estratégias de prevenção.
A partir dos anos 2000, surgiram esforços institucionais para padronizar estatísticas criminais no Brasil, como os anuários do FBSP e o Atlas da Violência publicado pelo IPEA.
Essas iniciativas consolidaram indicadores, mas também expuseram problemas: divergências entre registros estaduais, subnotificações e variações na metodologia de coleta.
Autores como Cano (2017) e Batitucci e Minayo (2017) reforçam que, sem metodologias sólidas, o manejo inadequado dos dados compromete qualquer política pública.
2. O problema da interpretação e do manejo
A ausência de padronização, o uso político dos dados, a deficiência de registros e a falta de capacitação técnica para o tratamento da informação comprometem a gestão baseada em evidências e dificultam o planejamento racional das políticas públicas.
O tecnólogo em Segurança Pública, ao atuar na gestão administrativa, estatística e operacional das instituições, é diretamente afetado por esse cenário.
Sua missão é justamente corrigir distorções interpretativas, aprimorar o manejo dos registros oficiais e transformar dados dispersos em conhecimento estratégico.
O simples registro quantitativo não basta.
É preciso compreender as regularidades sociais e os contextos, como já apontava Quetelet (1835) ao propor suas ‘leis térmicas’.
Estudos de Kahn (2002) e Rolim (2006) mostram como erros metodológicos distorcem o diagnóstico criminal, perpetuando falhas institucionais.
O problema da interpretação e do manejo em segurança pública não é apenas técnico — é também ético, institucional e político.
A ausência de uma leitura científica dos dados compromete a legitimidade das políticas públicas e perpetua modelos de gestão baseados em percepções, não em evidências.
3. O papel do Tecnólogo em Segurança Pública
A formação tecnológica capacita o profissional a coletar, organizar e interpretar dados de forma crítica.
Lakatos e Marconi (2017) e Severino (2016) destacam a centralidade da metodologia científica para transformar registros em conhecimento aplicável.
O tecnólogo, portanto, atua como mediador entre dados brutos e políticas públicas.
Sapori (2007) e Mingardi (2013) acrescentam que o manejo adequado da informação é essencial para fortalecer a transparência e eficiência da segurança pública.
O tecnólogo em Segurança Pública representa uma resposta concreta a esse desafio: é o profissional capaz de converter dados em conhecimento e conhecimento em ação estratégica, fortalecendo a eficiência, a transparência e a confiança social nas instituições.
Compreender e enfrentar o problema da interpretação e do manejo é condição indispensável para consolidar uma segurança pública democrática, inteligente e humanizada, orientada por resultados e pelo respeito à cidadania.
4. Riscos do mau uso dos dados
A análise criminal exige rigor técnico. Quando ausente, abre-se espaço para manipulação política, distorção da realidade e perda de legitimidade das instituições.
Silva (2018) ressalta que a fragilidade dos registros oficiais impacta diretamente a formulação de políticas.
Por isso, o desafio contemporâneo é conjugar produção confiável, interpretação crítica e transparência pública.
O mau uso dessas informações, seja por negligência, manipulação ou violação de sigilo, representa um dos maiores riscos à eficácia institucional, à credibilidade das forças de segurança e à proteção dos direitos fundamentais.
Em um Estado Democrático de Direito, o dado público deve ser compreendido como instrumento de gestão e de transparência, e não como ferramenta de controle político, discriminação ou abuso de autoridade.
Como já informado, o mau uso dos dados comprometem a gestão baseada em evidências e dificultam o planejamento racional das políticas públicas.
Por isso, a ética da informação e o manejo técnico-legal dos registros constituem pilares da atuação do tecnólogo em Segurança Pública.
Conclusão
A segurança pública no Brasil enfrenta não apenas o desafio da violência, mas também o da produção, interpretação e manejo de dados oficiais.
A leitura equivocada desses dados compromete diagnósticos, distorce indicadores e conduz a políticas públicas ineficazes ou desconectadas da realidade social.
Por outro lado, seu uso racional e metodologicamente fundamentado permite prevenir crimes, otimizar recursos, avaliar resultados e reforçar a legitimidade estatal perante a sociedade.
Nesse contexto, o Tecnólogo em Segurança Pública emerge como profissional estratégico e mediador entre a técnica e a decisão política, apto a aplicar metodologia científica à realidade policial, a superar opacidades estatísticas e a transformar informações dispersas em conhecimento útil para a gestão pública da segurança.
A formação desse profissional incorpora disciplinas voltadas à estatística aplicada, sistemas de informação, análise criminal e ética na gestão de dados, permitindo-lhe compreender tanto os limites legais do tratamento de informações sensíveis quanto as potencialidades tecnológicas do uso responsável dos registros policiais.
O mau uso dos dados em segurança pública representa um risco direto à legalidade, à eficiência administrativa e à legitimidade institucional. Informações distorcidas ou manipuladas podem induzir erros estratégicos, alimentar narrativas equivocadas e até gerar violações de direitos fundamentais, quando utilizadas sem critério ou sem transparência.
Nesse sentido, a informação constitui o ativo mais sensível da segurança pública: quando tratada de forma incorreta, converte-se em instrumento de violação de garantias individuais e de descrédito das instituições estatais.
O Tecnólogo em Segurança Pública tem, portanto, papel central na gestão responsável e científica da informação, garantindo que os dados sejam coletados com precisão, interpretados com método e ética, e utilizados exclusivamente para o aprimoramento da segurança, da governança e da cidadania.
Sua atuação colabora com a transparência pública, o controle social e a prestação de contas, valores essenciais de uma administração pública republicana.
A boa gestão de dados é, assim, sinônimo de segurança jurídica, transparência administrativa e respeito à dignidade humana, princípios que estruturam o Estado Democrático de Direito e legitimam o uso da força pelo Estado.
Ao integrar conhecimento técnico, sensibilidade ética e visão estratégica, o Tecnólogo em Segurança Pública torna-se um agente de modernização institucional, capaz de converter a informação em inteligência, prevenção e confiança social.
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