
Jorge Coutinho Paschoal – Advogado e Mestre em Processo Penal pela USP; Coordenador e Professor do Curso de Tecnólogo em Segurança Pública da Faculdade VP.
A finalidade do processo – mormente penal – é a averiguação da veracidade a respeito da alegação de um fato que se mostre, em tese, delituoso. Nesse sentido, coloca-se, de forma acertada, que o fundamento do processo reside na busca da verdade[1], para que o processo atinja seu escopo de justiça e, no que for possível, de pacificação social[2].
Certamente, quando se fala em verdade no processo, seja ele de natureza penal ou civil, pressupõe-se uma verdade que não seja absoluta, a qual, diga-se de passagem, como exaustivamente mencionado pela doutrina, é intangível.
Pensar no acertamento do fato pressupõe a busca de uma verdade que só possa ser realizável em seu sentido relativo, seja por conta da debilidade do conhecimento humano, seja em decorrência das limitações de direito probatório. É dizer, busca-se uma verdade que, na medida do possível, só pode ser aquela atingível[3].
Sem aprofundar aqui a questão da verdade, o que, certamente, ultrapassaria o objetivo deste artigo, quer-se pontuar que a sua relativização não implica a conclusão de que o processo nunca consiga chegar ao seu alcance; ou, mais equivocado ainda, que, pela dificuldade em se atingir a verdade, o processo prescinda de sua busca[4].
Em realidade, deve-se, humildemente, reconhecer que o homem está longe de um conhecimento absoluto das coisas, razão porque não pode descrever, com 100% de precisão, como os fatos passados ocorreram.
Contudo, isso não permite afirmar que não se obtenha êxito em alcançar um ponto razoável, isto é, um dado relativamente seguro, que explique – com certa dose de estabilidade – a respeito de um dado objeto de estudo (nas ciências exatas e biológicas) ou como determinado fato se deu, no passado (nas ciências humanas), pois isso seria negar a ciência e, no limite, o próprio Direito.
Em síntese: tanto será injusto o processo que busque uma verdade absoluta (a pretexto de promover a tortura ou outras violações de direitos fundamentais) como será também arbitrário o processo que não se comprometa com a verdade.
O processo (e o próprio direito) não pode almejar o alcance da verdade absoluta, mas também não pode abandonar a pretensão de um mínimo de verdade[5]; caso contrário, não haveria necessidade de direitos e garantias, tais como o direito à prova, o direito ao contraditório e à motivação das decisões.
Para que a previsão de tantos direitos e garantias fundamentais se, como alguns dizem, a verdade seria um dado secundário ou meramente contingente ou coadjuvante ao processo? Sem verdade, estaria o processo em busca do quê: do vale encantado?
É equivocado raciocinar, como querem alguns, que o conceito de verdade seja deletério ao processo, pois, a seu ver, levaria à restrição de direitos, como ocorreu, no passado, para justificar a tortura. No ponto, acerta o argentino Alberto M. Binder ao discorrer que a verdade, ao mesmo tempo em que impulsiona o motor da persecução, fundamenta e legitima os direitos e garantias processuais[6].
Para o bem do Estado Democrático de Direito e da justiça, deve-se abandonar os radicalismos de que tanto se deve buscar uma verdade absoluta (a todo custo) como o de que, absolutamente, não se pode almejar o alcance da verdade.
Os dois extremos são deletérios à sociedade e ao direito. Sem verdade (seja no processo, seja no direito), não se tem mais a devida dimensão dos direitos que devem ser respeitados, e o porquê de deverem sê-lo (o que implica uma visão histórica); esse ceticismo é pernicioso, pois, sem verdade, os fatos (sejam processuais, ou da vida) podem, a todo tempo, ser “reconstruídos” ou (re) lidos, de outra forma.
Observa-se, por fim, no mínimo, a incongruência em se sustentar não existir verdade, quando, por essa linha de pensamento, seus idealizadores têm por dogma, por verdade (absoluta), justamente o fato de não existir qualquer verdade.
[1] Ensina Maria Thereza Rocha de Assis Moura que a “procura da verdade material, esta, sem dúvida, o dado mais relevante do fundamento do processo penal. A perquirição da verdade restringe-se, porém à probabilidade de conceber uma idéia, mais ou menos exata, sobre a ocorrência de prática tida como delituosa, vale dizer, à certeza subjetiva, enquanto persuasão de uma verdade. A verdade que se atinge, outra não é que a verdade possível ou processual, e a certeza moral há de ser o critério da verdade para o juiz, já que, há muito, abandonada a fórmula da certeza legal” (MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009 [reimpressão], p. 1).
[2] “… o fim do processo é a pacificação social, a justiça, o que demanda, sem dúvida, a apuração mais acertada possível da verdade e a motivação da decisão proferida” (MANZANO, Luís Fernando de Moraes. Prova pericial: admissibilidade e assunção da prova científica e técnica, no processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011. p. 01).
[3] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3ª ed.São Paulo: RT, 2009. pp. 41-42.
[4] “Nesse sentido, reconhecer a impossibilidade de obter a verdade absoluta não significa abandonar toda e qualquer verdade” (RUSSO, Luciana. Exame de corpo de delito no direito processual. Dissertação (Mestrado) apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), 2005. p. 13).
[5] “… mesmo que se aceite a impossibilidade de se atingir um conhecimento absoluto ou uma verdade incontestável dos fatos, não é possível abrir mão da busca da verdade” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 24).
[6] “… a verdade cumpre uma função dual dentro do processo, por um lado é uma meta da indagação e, portanto, um motor da perseguição penal e, por outro, a verdade já não será um fim absoluto e sua busca estará rodeada de limites. O descobrimento de que a verdade permitia construir grande contribuição do pensamento iluminista, que dá origem a uma nova época para o direito penal e o processo penal. As garantias penais, que estabelecem requisitos mais rigorosos acerca do que é preciso averiguar e as garantias processuais que estabelecem mecanismos de comprovação rigorosa foram construídas em torno do conceito de verdade, mas agora a partir de uma visão política distinta” (BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais: Elementos para uma Crítica da Teoria Unitária das Nulidades no Processo Penal. Tradução: Angela Nogueira Pessôa. Revisão: Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. pp. 54-55)



