
Nohara Paschoal – Advogada. Mestre em Direito Penal pela USP. Sócia da Paschoal Advogados. Professora do Curso de Segurança Pública da Faculdade VP
A violência sexual no Brasil apresenta um cenário de extrema gravidade, marcado por um aumento nos registros oficiais. Os dados mais recentes demonstram uma escalada na violência, sobretudo contra grupos vulneráveis.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que compila informações das Secretarias Estaduais de Segurança Pública, o Brasil registrou um volume recorde de 87.545 vítimas de estupro e estupro de vulnerável em 2024 (dados do 19º Anuário). Este número é o maior desde o início da série histórica em 2011. A análise detalhada revela a extrema vulnerabilidade de crianças e adolescentes, visto que o crime de estupro de vulnerável representa cerca de 76% do total de casos registrados. A maior parte das vítimas é do sexo feminino (87%) e a violência ocorre predominantemente no ambiente familiar (65,7%), perpetrada por agressores conhecidos ou parentes.
Contudo, a despeito dos índices alarmantes de crimes envolvendo violência sexual, é crucial reconhecer a subnotificação que permeia a realidade brasileira. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que o Brasil pode registrar cerca de 822 mil casos anuais de estupro, o que significa que o registro policial capta apenas 8,5% da totalidade.
Mais alarmante é o dado específico do sistema de saúde, onde se estima que apenas 4,2% dos casos chegam a ser notificados, evidenciando uma falha grave na vigilância epidemiológica, a despeito da obrigatoriedade de notificação de violência sexual, desde o ano de 2003.
Com efeito, a Lei n. 10.778/2003, ao estabelecer a Notificação Compulsória de casos de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde (públicos e privados), trouxe importante instrumento para o enfrentamento da violência sexual e de gênero no Brasil, na medida em que transformou o setor saúde em um agente de vigilância epidemiológica e de articulação da rede de proteção.
Ao tornar a notificação obrigatória por parte dos profissionais de saúde, a lei visou alimentar o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), permitindo ao Estado ir além dos dados policiais, que sofrem alta subnotificação, propiciando a obtenção de uma estimativa mais próxima da real magnitude da violência.
Os dados coletados através das notificações compulsória, em vista de um maior grau de detalhamento (tipo de violência; perfil da vítima; vínculo com o agressor; local da agressão e etc), findam por alicerçar a criação de políticas públicas focalizadas e de ações preventivas específicas (por exemplo, patrulhamento comunitário ou programas de prevenção intrafamiliar). Sem contar que permitem avaliar se as ações de prevenção e enfrentamento estão, de fato, reduzindo a incidência da violência ao longo do tempo.
Dada a importância da notificação compulsória ao enfrentamento à invisibilidade da violência praticada contra a mulher, a estimativa do IPEA de que apenas 4,5% dos casos de violência sexual são notificados pelo sistema de saúde é estarrecedora, exigindo, assim, um olhar atento para as possíveis causas, uma vez que a falha na vigilância epidemiológica compromete a eficácia da própria lei e das políticas públicas subsequentes.