
André Luís Luengo – Doutor em Direito Constitucional e Delegado de Polícia
Resumo
O presente artigo analisa o fenômeno das cifras negras, entendido como a diferença entre a criminalidade real e aquela efetivamente registrada nos órgãos oficiais de segurança pública. Por meio de abordagem teórica e metodológica, discutem-se as causas da subnotificação, os desafios da coleta de dados e as implicações para o planejamento e execução de políticas públicas. A reflexão é voltada à formação do Tecnólogo em Segurança Pública, enfatizando a importância da correta interpretação e manejo das estatísticas criminais para a eficiência da gestão e para a consolidação de políticas baseadas em evidências.
Palavras-chave: Cifras Negras; Subnotificação; Estatísticas Criminais; Tecnólogo; Segurança Pública.
Introdução
A análise da criminalidade no Brasil enfrenta o desafio da discrepância entre os crimes ocorridos e aqueles efetivamente notificados às autoridades policiais.
Esse fenômeno, conhecido como cifras negras, revela a fragilidade do sistema de registros e a distância entre a realidade social e os dados oficiais.
Para o Tecnólogo em Segurança Pública, compreender as cifras negras é essencial, pois sua atuação exige a leitura crítica das estatísticas, a identificação de falhas nos mecanismos de notificação e a proposição de soluções estratégicas.
1. O conceito de cifras negras
O termo “cifras negras” foi inicialmente sistematizado na criminologia europeia do século XX, indicando a criminalidade oculta.
Como destaca Beato (2012), a ausência de registros compromete a confiabilidade das estatísticas criminais, dificultando análises comparativas e políticas públicas.
O termo “cifras negras” refere-se ao conjunto de crimes que ocorrem, mas não são registrados ou formalmente comunicados às autoridades policiais, permanecendo, portanto, invisíveis às estatísticas oficiais.
Essa invisibilidade produz uma lacuna entre a criminalidade real e a criminalidade registrada, dificultando a formulação de diagnósticos precisos sobre a violência e a eficácia das políticas públicas de segurança.
Segundo Adolphe Quetelet (1835), considerado um dos precursores da estatística criminal, já se observava que o número de delitos conhecidos pelas instituições estatais representava apenas uma fração da realidade delitiva.
Essa discrepância foi posteriormente conceituada por criminólogos como Biderman (1967) e Sellin (1931), que destacaram a importância de compreender as causas da subnotificação.
2. Causas da subnotificação
As cifras negras podem resultar de diversos fatores, entre os quais se destacam:
Medo ou desconfiança da vítima em relação às instituições de segurança e justiça;
Percepção de irrelevância do delito, levando o cidadão a não registrar a ocorrência;
Falta de acesso a delegacias ou canais de denúncia, especialmente em áreas rurais ou periféricas;
Inadequação dos mecanismos de registro policial, que podem desestimular a formalização da ocorrência;
Fatores culturais e sociais, como a naturalização de determinadas formas de violência (doméstica, sexual, institucional).
Vários autores já comentaram sobre esses fatores: a falta de confiança na polícia (Soares, 2006); o medo de retaliações e estigmatização das vítimas (Batitucci & Minayo, 2017); a banalização de crimes de menor potencial ofensivo (Cano, 2016); e a desigualdade de acesso aos serviços de segurança (Sapori, 2007).
3. Impactos para a gestão da segurança pública
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2025) e o Atlas da Violência (IPEA/FBSP, 2025) demonstram como as cifras negras afetam o diagnóstico da violência.
O desconhecimento da realidade plena leva à elaboração de políticas ineficazes e ao mau direcionamento de recursos.
Autores como Kahn (2002) e Lima (2001) reforçam a necessidade de desenvolver instrumentos confiáveis para reduzir as distorções produzidas pelas cifras negras.
3.1. Aspectos metodológicos sobre o banco de dados
As análises dos dados em segurança pública, adota uma abordagem qualitativa e dedutiva, fundamentando a criminalidade com base nas estatísticas públicas.
O tratamento dos dados estatísticos segue o modelo empírico-analítico proposto por Beato (2012) e Lima (2001), priorizando a interpretação crítica das fontes oficiais — tais como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e o Atlas da Violência.
O marco epistemológico insere-se na tradição da criminologia crítica e empírica, que busca compreender a produção e a seletividade dos dados criminais não apenas como fenômeno técnico, mas também social e político.
Sob essa perspectiva, a leitura das cifras negras transcende o diagnóstico quantitativo e envolve a análise dos processos institucionais que definem o que é ou não reconhecido como crime registrado.
A discussão metodológica da busca dos dados, também se ampara na Lei nº 13.675/2018, que institui o Sistema Único de Segurança Pública – SUSP. Esse diploma legal representa um avanço significativo na padronização dos indicadores e estatísticas criminais no Brasil, ao estabelecer parâmetros comuns de coleta, integração e disseminação das informações entre os órgãos federais, estaduais e municipais.
O SUSP, ao unificar protocolos de registro e interoperabilidade de sistemas, contribui diretamente para reduzir as distorções estatísticas que alimentam as cifras negras.
Nesse contexto, o Tecnólogo em Segurança Pública assume papel essencial como agente de interpretação ética e técnica dos dados, articulando teoria e prática profissional.
Cabe a esse profissional não apenas compreender os indicadores, mas também identificar falhas de registro, propor soluções de melhoria e garantir que a leitura dos números seja compatível com os princípios da legalidade, transparência e responsabilidade social.
Assim, a formação tecnológica torna-se instrumento estratégico para a consolidação de políticas públicas baseadas em evidências e orientadas à efetividade da ação estatal.
Desta forma, deve saber lidar com os casos subnotificados.
4. Relevância para o Tecnólogo em Segurança Pública
O Tecnólogo deve atuar como gestor crítico de dados, capacitado a identificar lacunas estatísticas e a propor metodologias de análise que considerem tanto os dados oficiais quanto as pesquisas de vitimização.
Autores estrangeiros como Biderman e Reiss (1967), Hindelang, Hirschi e Weis (1981) e Skogan (1974) ofereceram metodologias pioneiras para medir a criminalidade oculta.
No Brasil, Adorno e Lima (2004), Musumeci e Cano (1998) e Ratton e Torres (2007) complementam a análise crítica, mostrando os efeitos sociais e políticos da subnotificação.
Conclusão
Do ponto de vista teórico, o estudo das cifras negras dialoga com a vitimologia, a sociologia criminal e a criminologia crítica, uma vez que revela como a seletividade do sistema penal influencia o que se registra como “crime”.
As cifras negras constituem um dos principais desafios para a segurança pública brasileira, pois revelam a distância entre o crime real e o crime registrado.
Para o Tecnólogo em Segurança Pública, compreender esse fenômeno é fundamental para interpretar corretamente os indicadores de criminalidade, evitando conclusões precipitadas sobre aumento ou diminuição de delitos.
Na prática da gestão pública, o enfrentamento das cifras negras exige a adoção de métodos complementares de coleta de dados, como pesquisas de vitimização, análises de georreferenciamento e o cruzamento de informações entre diferentes órgãos (saúde, educação, assistência social, etc.). Esses instrumentos permitem estimar a magnitude real da violência e orientar políticas de prevenção baseadas em evidências.
Assim, o estudo das cifras negras contribui para a formação de um profissional crítico e tecnicamente preparado, capaz de interpretar a realidade da segurança pública com base em dados confiáveis, transparência institucional e responsabilidade social.
Para o Tecnólogo em Segurança Pública, compreender e enfrentar esse fenômeno é condição indispensável para formular políticas públicas baseadas em evidências, capazes de refletir a realidade social e reduzir as desigualdades no acesso à justiça e à proteção estatal.
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