O Inquérito das Fake News, a Defesa Ardorosa do Juiz de Garantias e a Incoerência das Convicções Dogmáticas[1]


Jorge Coutinho Paschoal – Advogado e Mestre em Processo Penal pela USP; Coordenador e Professor do Curso de Tecnólogo em Segurança Pública da Faculdade VP

A alteração legislativa empreendida no final de 2019 (Lei Anticrime) acarretou diversas mudanças em nosso modelo de Justiça Penal.

Com toda reforma legislativa, sobretudo do tamanho da que foi empreendido pela Lei n. 13.964/2019, ainda hoje, só o tempo dirá como será aplicada e interpretada pelos tribunais e se, de fato, aperfeiçoará o nosso sistema criminal, como menciona, de forma um tanto quanto presunçosa, o próprio texto legal.

As mudanças foram muitas, em especial quanto à adoção de um modelo de justiça negociada muito mais amplo que o admitido em sede de Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), não obstante, antecipa-se, pensamos se tratar esta opção legislativa de um erro, pois a justiça negocial já não vinha dando certo, com os crimes de menor potencial ofensivo, que se dirá agora, em que se impõe que o acordo implique até mesmo  – feitos alguns senões, pela jurisprudência – admissão de culpa.

Este assunto, contudo, será objeto de outra análise, em outra oportunidade, assim como tantas outras mudanças empreendidas pela Lei apelidada ou autointitulada como Anticrime, que alterou não só o Código Penal, mas também o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal, além de diversas leis extravagantes.

Mudança bastante comentada refere-se à instituição do juiz de (ou das) garantias.

Em síntese, a lógica do juiz de garantias nada mais constituiria que a concretização da ideia (que não é nova entre nós) em se reservar a investigação preliminar ao acompanhamento de um juiz diverso do que irá acompanhar um eventual futuro processo penal, na hipótese de dedução da ação penal.

Isso porque, em nosso sistema (na verdade, antigo, pois a lei já não é tão nova), o mesmo juiz que acompanha a investigação policial, deferindo, quando for o caso, medidas cautelares de urgência e de obtenção de prova (por exemplo, autoriza a quebra do sigilo de dados, uma interceptação telefônica, uma busca e apreensão), também recebe a acusação e acompanha o processo deduzido, sentenciando o feito.

A adoção do juiz de garantias, implicando a necessidade de haver dois magistrados acompanhando o feito penal, em sua globalidade (claro, quanto e se houver acusações formal recebida e processada) evitaria, na ótica dos entusiastas da novidade legal, o inconveniente ou o risco de o mesmo magistrado, apenas pelo fato de ter acompanhado a investigação preliminar, ficar “contaminado” com a atividade que teria desempenhado em sede de inquérito policial.

Não nos parece, hoje, com um novo entendimento sobre a questão, seja um temor fundado, observando-se que o nosso juiz, na fase de investigação preliminar, não tem um protagonismo como o existente, por exemplo, nos modelos de juizado de instrução, nos ordenamentos jurídicos alienígenas, em que vigoraria a lógica do juiz de garantias (para fazer frente, justamente, a este protagonismo investigatório, que não se aplica a nós).

Em primeiro lugar, é e sempre foi muito controversa a afirmação de que o juiz que tenha acompanhado a investigação preliminar ficaria impedido para julgar a causa.

Basta uma rápida consulta à jurisprudência de qualquer tribunal nacional (e sobretudo, Superiores) para verificar que o fato de o juiz autorizar medidas cautelares não significa que tenha ficado parcial a favor da tese da acusação, assim como fato de indeferir pedidos dos órgãos da persecução não significa que tenha abraçado a causa da defesa, tornando-se parcial a esta. Mesmo porque, ao deferir a produção de determinado meio de prova, o juiz nada mais estará exercendo que a sua função, em prol da necessária investigação dos fatos, para o seu correto acertamento.

Outrossim, o fato de se autorizar uma medida probatória (meio de obtenção de prova) não implica, necessariamente, o comprometimento do magistrado com qualquer tese, seja a favor ou contra quem quer que seja, pois o resultado probatório pode ser favorável, ou contrário, a qualquer das partes, até mesmo em relação a quem pediu a medida.

Argumenta-se: mas o juiz, ao autorizar alguma medida, visaria chegar a algum lugar não é mesmo? Indagação, pertinente, do Professor Geraldo Prado. De fato, o magistrado tem por objetivo chegar a algum lugar, consistente em apurar o fato, seja trabalhando com a hipótese de a acusação ser procedente, seja improcedente.

Também é a sua função apurar os fatos, na medida em que juiz tem o dever de verificar como o fato aconteceu na realidade e, obviamente, para tanto, precisa autorizar meios de investigação probatória mais incisivos ou invasivos.

O juiz, sobretudo em matéria criminal, não pode e não deve ser uma samambaia, ou uma ameba, tampouco se manter inerte e/ou apático. Mas também não pode ser um inquisidor, ou permitir, quando evidente o comprometimento da isenção, que prossiga com o caso.

Obviamente, não pode ser proativo, tendencioso ou parcial, caso contrário não seria juiz, mas isso não implica que tenha quer ser uma múmia.

Esta discussão, é claro, passa por uma outra, bem mais profunda, que está relacionada aos modelos ou sistemas processuais penais, seja com relação à (alguma e eventual) atividade probatória do magistrado, seja com relação à gestão da prova.

O debate atual em relação à atividade do juiz tem razões históricas e liga-se aos sistemas processuais continentais, haja vista a existência de três corpos distintos, quais sejam, inquisitório, acusatório e o que se chama por misto, sistemas que não devem ser confundidos com os modelos de investigação do sistema de Common Law, no direito Angloamericano, divididos em adversarial e inquisitorial, sem uma necessária coincidência ou correspondência com o nosso.

Isso precisa ficar claro, pois há muita confusão entre um e outro modelo, confundindo as pessoas o sistema inquisitorial continental (em que o juiz não é imparcial) com o inquisitorial system, do modelo angloamericano.

Nos sistemas continentais, de fato, houve períodos em que o processo se iniciava por meio de uma acusação feita diretamente pelo juiz, cabendo a ele tanto o julgamento da causa como o papel, inclusive, de defender o acusado.

Na história, embora possa parecer exemplo teórico, não seria difícil imaginar a situação absurda de alguém vítima pretender julgar, com alegada isenção, seu ofensor.

Trata-se do sistema inquisitório. O seu surgimento é situado junto com a Monarquia e ao Império romano, sendo que a lógica desse sistema alcançou sua maior expressão na investigação levada a cabo pela Inquisição.

Aqui o próprio juiz acusava e instaurava o procedimento, concentrando em suas mãos a gestão da prova, o que, frise-se, não tem relação alguma com a atividade desenhada por nosso juiz, modernamente, que não pode (ou melhor, não poderia, haja vista a existência e manutenção do trâmite do questionável, com o devido respeito, inquérito das fake news no STF) instaurar investigação de ofício.

Isso, mais uma vez, deve ficar claro, pois há quem afirme que vivíamos em um modelo de sistema inquisitório, na sistemática antiga, antes do juiz de garantias, afirmação completamente equivocada.

Com o passar do tempo, haja vista uma lenta e gradual conscientização de direitos do homem, percebeu-se que esse modelo de sistema inquisitorial, de vertente continental, não seria o mais justo e correto, exatamente porque não poderia o juiz exercer adequadamente, ao mesmo tempo, o papel de acusador, defensor e julgador.

Imagine a “isenção” do magistrado que pretenda fazer as vezes de advogado, ou mesmo pretenda, substituindo-se à vontade do acusado, em escolher o seu defensor?

O magistrado, ao acusar, ou a pretexto de oferecer a melhor defesa, estaria comprometido já desde o início com a tese acusatória, por si formulada. Não haveria qualquer isenção por parte do juiz ao julgar alguém a quem, originariamente, imputou um fato delituoso. Verificava-se que o juiz, comumente, buscava tão-somente provar a acusação formulada por si. Não há possibilidade de este julgamento, mais histórico, ser considerado justo. Trata-se de um teatro, se não uma tragédia, em termos civilizatórios.

Já no sistema denominado acusatório, ao se separarem melhor as funções, verificava-se que o julgador não se encontrava comprometido com qualquer tese. Estaria assim bem situada ou assegurada a imparcialidade do juiz, pressuposto de qualquer processo justo. Não há, evidentemente, coincidência subjetiva entre órgão acusador e julgador. O sistema acusatório representa um modelo de preservação da forma processual, principalmente pela desvinculação da atividade persecutória pelo juiz.

Como uma espécie de meio termo a esses dois sistemas, haveria a criação do sistema misto, sendo exemplo mais significativo o sistema francês, surgido no período napoleônico, no Code d’Instruction Criminalle de 1808. A investigação seria toda dirigida pelo juiz, em uma lógica mais ligada ao sistema inquisitorial (sistemas dos juizados de instrução, que não foram adotados por nós), sendo que, na ação penal propriamente dita, da instrução perante o juiz criminal, quando houvesse acusação formal, haveria o norteamento do processo de acordo com uma lógica mais acusatória, com as partes atuando.

E, como já dito, ao lado desses grandes sistemas continentais (quais sejam, o acusatório, inquisitório e misto), existem os sistemas adversarial e inquisitorial, mais ligados à tradição dos países de cultura anglo-americana.

O processo, nos países de cultura de Common Law, é visto como uma verdadeira luta ou contenda entre as partes, ficando inteiramente ao seu encargo “a responsabilidade pelo impulso da marcha processual, dentre a qual estaria incluída a produção e a apresentação da prova” (ponderação do Professor Marcos Zilli).

O sistema adversarial e inquisitorial, seja o norte-americano, ou o inglês, nesse sentido, não têm relação com a conceituação existente nos países de cultura continental, que se faz em sistema inquisitorial e acusatório, havendo, quando muito, apenas confusão terminológica. Com efeito, nos países de cultura anglo-americana, as funções de julgar, defender e acusar são separadas e muito bem definidas.

Na verdade, estes sistemas, tanto o adversarial, quanto o inquisitorial, já têm como pressuposto a separação de funções no processo, diferenciando-se apenas no que concerne à possibilidade de o juiz ostentar algum tipo de iniciativa ou atividade probatória, paralelamente à (atividade) das partes, presente este dado (ou seja, alguma atividade probatória do juiz) no sistema inquisitorial, inexistindo no sistema adversarial.

Ultimamente, há uma tendência de aproximação entre todos estes sistemas, sendo possível pensar em um sistema acusatório, conforme pensado no modelo continental (com separação entre atividade acusatória e judicante), mas com contornos do modelo inquisitorial angloamericano (isto é, com possibilidade de atividade instrutória pelo juiz, sem protagonismo e comprometimento de sua isenção, como ocorre entre nós) ou mesmo adversarial (em que não haveria qualquer possibilidade instrutória ao magistrado)

Deve-se ter em mente, como bem descreve Diogo Rudge Malan, que “tanto o processo adversarial quanto o não adversarial têm por instrumento a descoberta da verdade. Eles diferem não quanto a esse instrumental, e sim quanto ao mecanismo de descoberta da verdade visto como mais adequado, justo e socialmente legítimo”.

No ponto, deve ficar claro que inquisitivos (no sentido de serem indagativos, não devendo o termo ser lido com qualquer conotação autoritária) mostram-se todos os procedimentos penais (aliás, hoje em dia, não só penais), sejam acusatórios ou inquisitórios, na sempre precisa lição do Professor Rogério Lauria Tucci, seguido por Sérgio Pitombo.

Sendo o fundamento do processo a busca da verdade atingível, esta o verdadeiro fator de legitimação do próprio garantismo penal, na esteira da teoria de Luigi Ferrajoli, a persecução deve ser, obviamente, indagativa, isto é, investigatória, inquisitiva, o que não deve nem pode ser interpretado ou confundido como a possibilidade de se admitir qualquer arbítrio, próprio do sistema inquisitorial.

Do exposto acima, pode-se verificar que, no sistema inquisitório, há um protagonismo do juiz no que concerne às tarefas processuais, tendo amplos e irrestritos poderes para iniciar procedimentos e/ou produzir provas contra ou a favor ao acusado.

Trata-se de sistema em que não há diálogo, atuando o magistrado, na maioria das vezes, para confirmar uma suspeita ou acusação formulada por si.

Mais uma vez: imaginem se a vítima pudesse julgar o seu caso, ou adversário?

Seja como for, o sistema inquisitorial, embora se incorra em muita confusão por aí, já não era o sistema instituído antes da própria promulgação do juiz de garantias, sendo que, especialmente com a Constituição de 1988, nossos juízes não poderiam ser catalogados como inquisitoriais, atuando conforme uma lógica dentro do modelo acusatório, sendo esta sistemática temperada com a admissibilidade de atividade instrutória, no curso do processo penal, desde que supletiva à atividade das partes.

A adoção do juiz de garantias é uma possibilidade legislativa válida, não se mostrando, por si só, inconstitucional, do ponto de vista material, como sustentam alguns, mas talvez não fosse necessária, sobretudo porque o fato de um juiz acompanhar ou supervisionar o inquérito, mormente em nosso modelo legal – que, frise-se, não tem paralelo com o juizado de instrução, vigente no modelo europeu – não o tornaria um inquisidor no curso da ação penal.

Criou-se uma modalidade, em lei (embora, felizmente, revista pelo STF) de impedimento para o juiz que não existia antes, nem, com o devido respeito, se justificaria.

Isso, aliado ao curto prazo de vacatio legis da reforma para implementação do juiz de garantias (readequado pelo STF), poderia levar à decretação de uma série de invalidades, que, não raro, iriam blindar alguns poucos privilegiados em detrimentos de outros, para os quais nulidades flagrantes nunca são reconhecidas (na maioria dos casos, sempre se pode argumentar que não houve comprovação do prejuízo – o conhecido argumento de inexistência de prejuízo – ou que o caso em discussão tem peculiaridades não presentes nos demais casos, ou melhor, dos precedentes em relação a alguns poucos intocáveis, dado que as nulidades reconhecidas nestes raros casos não são estendidas aos demais).

Obviamente, há situações de comprometimento da imparcialidade do juiz, em que ele passa a atuar não mais como magistrado, mas como parte e, geralmente, acusatória; entretanto, nestes casos, haveria sempre a possibilidade de oposição de suspeição, sendo que só o caso concreto poderia confirmar se haveria este vício.

Seja como for, nos casos mais delicados, não se precisaria da aprovação de um juiz de garantias, por exemplo, para chegar à conclusão de que o inquérito das fake news, instaurado no STF, de ofício, para apurar fatos, até hoje, incertos, a mando da Presidência, à época, do Ministro Dias Toffoli, cuja relatoria coube, por escolha, ao Ministro Alexandre de Moraes, e cujo trâmite e continuidade se deu, cabe relembrar, contrariamente à manifestação da própria Procuradora Geral da República à época, Doutora Raquel Dodge[1], constituiu um erro jurídico, respeitosamente a quem pensa diferente, à margem do devido processo legal, sendo que, neste ponto, o voto vencido e isolado do sempre Professor e Ministro, Marco Aurélio de Mello, fazia jus ao melhor posicionamento do Direito.

Se era difícil explicar a continuidade de tão controverso inquérito, mais complicado é explicar o entusiasmo de quem defenda ardorosamente o instituto do juiz de garantias, ou discorra que o juiz de garantias inaugurou o sistema acusatório, em nosso sistema jurídico (o que não deixa de ser um grave equívoco e até injustiça ao sistema anterior) e, ao mesmo tempo – se não defenda – ao menos minimize os questionamentos quanto aos atos praticados no bojo de referido inquérito, nada discorrendo, por exemplo, (ou explicando) porque um feito em primeiro grau não poderia ser acompanhado pelo mesmo magistrado na fase preliminar e de instrução, mas um feito, nos Tribunais Superiores, o poderia, sem qualquer questionamento quanto à isenção do julgador.

[1] Embora com algumas alterações e atualizações, e outro título, é o conteúdo do artigo publicado por nós no Site Empório do Direito. As notas de rodapé, para uma análise mais aprofundada, podem ser consultadas no artigo originário: https://emporiododireito.com.br/leitura/juiz-de-garantias-uma-necessidade-como-explicar-a-manutencao-do-inquerito-inquisitorial-das-fake-news-instaurado-de-oficio-no-stf

[2] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/dodge-compara-stf-a-tribunal-de-excecao-e-ve-inquerito-das-fake-news-como-ilegal.shtml

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