ADPF 635: Limites e Exigências do STF às Operações Policiais nas Comunidades Cariocas

Nohara PaschoalAdvogada. Mestre em Direito Penal pela USP.  Sócia da Paschoal Advogados. Professora do Curso de Segurança Pública da Faculdade VP.

A Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro e diversas outras entidades e movimentos sociais, junto ao Supremo Tribunal Federal, no ano de 2019, tem como objeto a política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro e suas consequências em operações policiais realizadas em comunidades e favelas.

O cerne da ADPF 635 consiste no questionamento da compatibilidade da atual política de segurança pública do Rio de Janeiro com diversos preceitos fundamentais da Constituição Federal. Os proponentes da ação alegam que as operações policiais nas comunidades resultam em elevadas taxas de letalidade e violam direitos como o da dignidade da pessoa humana e o da segurança pública de forma universal.

A tramitação da ADPF 635 é marcada por medidas cautelares e decisões de mérito que estabeleceram condições e restrições para a atuação das forças de segurança do estado.

Em 2020, em razão do contexto da pandemia de COVID-19, o então Relator da ação, Ministro Edson Fachin, concedeu uma liminar determinando a suspensão de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro. A decisão permitiu que tais operações fossem realizadas apenas em hipóteses absolutamente excepcionais, devendo ser comunicadas e fiscalizadas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, com antecedência.

No ano de 2021, o Plenário do STF, ao analisar o mérito e a manutenção das medidas, evoluiu na sua determinação, substituindo a regra da “absoluta excepcionalidade” por um conjunto de exigências relacionadas ao planejamento, proporcionalidade e transparência das operações.

Assim, o Tribunal exigiu que o Governo do Estado do Rio de Janeiro elaborasse e apresentasse um Plano de Redução da Letalidade Policial e Controle de Violações de Direitos Humanos.

Ademais, foi determinada a observância de diversas regras procedimentais para aumentar o controle e a transparência das ações, incluindo: a exigência de preservação integral da cena do crime após eventos com morte ou lesão corporal decorrente de intervenção policial, para facilitar a perícia e a investigação; uso de equipamentos de gravação de áudio e vídeo (câmeras) nas fardas e/ou viaturas dos policiais; obrigação de envio de relatórios detalhados ao STF e ao Ministério Público sobre todas as operações policiais.

Importa destacar que a ADPF 635 não se encerra em uma única decisão. Em realidade, ela estabeleceu um processo de monitoramento contínuo, pelo qual o STF acompanha a implementação das medidas exigidas ao Estado do Rio de Janeiro, em conjunto com os órgãos de controle, avaliando o cumprimento das determinações e a evolução dos indicadores de violência e letalidade nas intervenções policiais.

Por atuar como quadro normativo e monitoramento judicial da legalidade e transparência das operações policiais no Rio de Janeiro, a ADPF 635 tem relação direta com a última megaoperação (Operação Contenção), realizada no final de outubro de 2025, nos Complexos do Alemão e da Penha, é direta. Tanto que a ADPF 635, subsequente à operação, passou a ser o centro do debate.

 O elevado número de mortes e denúncias sobre possíveis violações de direitos humanos por organizações sociais acionaram imediatamente o mecanismo de fiscalização e monitoramento da ADPF 635, sob a relatoria temporária do Ministro Alexandre de Moraes.

E, por meio do Relator, o STF fez uma série de determinações ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, dentre as quais, a apresentação, em prazo curto, de relatórios detalhados, laudos necroscópicos (incluindo registros fotográficos e busca por projéteis), e informações sobre as vítimas e prisões.

Exigiu-se, por sua vez, a preservação de todas as imagens das câmeras corporais dos agentes envolvidos na operação, atestando o uso (ou a ausência) da tecnologia e seu cumprimento.

Igualmente, houve a solicitação dos relatórios de inteligência que embasaram a megaoperação, buscando verificar se a ação cumpriu o requisito da proporcionalidade e planejamento exigido pela Corte, em substituição à mera excepcionalidade.

A Operação Contenção demonstrou que a ADPF 635 não é apenas um conjunto de regras estáticas, mas um instrumento de litígio estrutural que força o Estado a justificar e comprovar a legalidade de suas ações em tempo real, especialmente em eventos com alta letalidade.

A ADPF 635 e as restrições impostas pelo STF às operações policiais são alvo de críticas significativas, principalmente por parte de gestores públicos da área de segurança, concentrando-se em dois eixos: a invasão de competência e o suposto enfraquecimento da ação policial.

No que diz respeito à invasão de competência, o principal argumento crítico é que o STF estaria extrapolando sua função jurisdicional e invadindo a esfera de competência do Poder Executivo (Governo do Estado). Argumenta-se que definir protocolos operacionais de segurança pública é atribuição da Secretaria de Segurança ou do Governo, e não de um tribunal, mesmo que seja a Corte Constitucional.

Por sua vez, quanto ao enfraquecimento da ação policial, alega-se que a necessidade de aviso prévio ao Ministério Público (MP) pode comprometer o elemento surpresa das operações. Já a obrigatoriedade de isolamento de perímetros, presença de ambulâncias e envio imediato de comunicação às corregedorias adiciona burocracia que acaba por engessar a resposta policial a situações emergenciais.

Argumenta-se, sobretudo, que as restrições levadas a efeito a partir da ADPF 635 teriam implicado aumento do poderio bélico e territorial das facções criminosas, que findaram “protegidas” pela inibição da ação policial.

Em suma, o debate sobre a ADPF 635 é polarizado entre a defesa intransigente dos direitos humanos e a redução da letalidade e a necessidade de autonomia e eficácia da política de segurança pública.

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